Culpa

É fácil dizer que a culpa é do computador por não conseguir escrever mais: ele foi trocado há pouco mais de um ano e, apesar de usá-lo todos os dias, suas mãos ainda não se acostumaram com o layout dos botões do teclado. É fácil dizer que a culpa é da chuva por não ter saído e tido que desmarcar aquele encontro com aquela garota maravilhosa com quem você sonha há anos. É fácil colocar a culpa na sua mãe ou no seu pai por ter chegado 10 minutos atrasado ao cinema. É fácil dizer que não acha aquele livro que você comprou há 7 anos mas que decidiu ler apenas agora e colocar a culpa na empregada, alegando que ela é incapaz ou insuficiente. 

É fácil culpar as coisas ou outra pessoa quando nada dá certo. "Minha culpa por ter enrolado e saído tarde do apartamento? Não, a culpa é daquele infeliz do motorista de ônibus que brecou em todos os sinais amarelos". A transferência de culpa é mais fácil do que uma transferência bancária. Não é burocrático, é apenas dizer, apontar o dedo para a bunda de outra pessoa. "Foi fulano, não eu!", como se estivesse delatando o assassino de um homicídio por estar com medo das consequências.

O medo de admitir que não escreve mais porque tem medo de descobrir que é e sempre foi incapaz, só teve uma fase boa por um tempo durante aqueles dias ensolarados. Agora anoiteceu e descobriu que não sabe de onde vinha toda aquela luz. Medo de admitir que você apenas se tornou preguiçoso. Medo de se deparar com seu antigo eu durante a escrita e não apreciar a visita.

O medo de admitir que não foi a empregada que mexeu no livro, mas foi você que, na última limpeza de livros, decidiu doá-lo por saber que aquela tinha sido uma compra eufórica: a capa era dura e bonita, porém você pouco se importava com o conteúdo. Tem medo de admitir, de lembrar, que você, no fundo, não tem fundo, que lê apenas para parecer intelectual, compra livros a torto e a direito apenas pela luxúria da visão, apenas para se gabar. Tão raso quanto uma poça após dois segundos de chuva. 

O medo de admitir que está com raiva dos pais por não terem comprado aquele celular super mega caro que você tanto queria; não por conta dos 10 minutos de trailers perdidos pelos quais você grita desnecessariamente sem se importar de fato. Medo de admitir que é ganancioso e infantil. 

O medo de admitir que tem medo. Medo de sair com a garota dos sonhos e os sonhos não serem mais sonhos, onde tudo é perfeito e o amor é eterno. Nada é eterno pois a eternidade está longe dos ombros da humanidade. Tem medo que, ao chegar no restaurante, descubra que as horas sonhando acordado foram desperdiçadas, medo de descobrir que o sentimento é recíproco, que ela também te ama mas que ela te largue por outra pessoa dois anos mais tarde. Medo de ser feliz.

Medo de ter medo.

Nosso ego não permite, muitas vezes, que assumamos nossos erros e as consequências de nossas ações. É instintivo. A merda aparece e você tem que dizer que foi outra pessoa, foi outra coisa, quem sabe não foi o cachorro? É assim que é o jogo e você tem que saber jogar. Levantamos nossos narizes e ficamos de "cu-doce" com coisas desnecessárias. Culpamos pessoas que nada têm a ver. O ego grita pela inocência do crime, chama as testemunhas, chantageia algumas e forja outras enquanto o julgamento prossegue e o juiz ainda não bateu o martelo pela última vez. 

Não aceitamos nossos limites, nem nossos equívocos, e muito menos que somos incapazes de grandeza. Somos humanos, afinal, deveríamos ser grandes, não deveríamos? Esse é o Sonho Americano: a Grandeza (demonstrada em sua quase totalidade pela coisas que gostaríamos de culpar: o carro de luxo cujo tanque esgotou no meio do percurso porque seu mordomo esqueceu de preenchê-lo; o celular mais rápido do mercado que não completa a ligação porque a operadora não lhe deu um dia a mais de créditos; o conjugue dos sonhos cujo corpo é divino mas é péssimo na cama). Se algo seguir um rumo diferente do que gostaríamos, não é nossa culpa: é de Deus, é do destino, é do gato que atravessou a rua, é da namorada, é do pai, é da avó, é do chefe. 

Nesta terra de covardes, quem admite a culpa é crucificado. 

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