Pulso de vida


Em 2014, depois de ver uma garota que eu amava (sem saber o quanto) com outro rapaz e de terminar um relacionamento da maneira mais idiota possível mas que pareceu extremamente plausível no momento, neguei-me qualquer tipo de amor. Disse a mim: chega. 

E chegou: uma leva de amargor que preencheu meu coração até transbordar para minha alma. 

Tudo me intoxicava, desde a queda de meus sonhos até a destruição, aos poucos, do meu couro cabeludo. Não bastava passar pela transição da adolescência à vida adulta sofrendo apenas sentimentalmente, haveria de sentir um pouco do meu orgulho, de uma das poucas coisas que eu gostava em mim, lentamente se descolorindo. Decidi-me, então, por partido e quebrado, buscando pouco fora do habitual ócio daquele ano. 

No andamento quase que doloroso do calendário, naquele mesmo ano, por volta de maio ou junho, inventei de instalar um aplicativo chamado Tinder em meu celular. Ouvira falar dele e até tinha visto algumas amigas usando em sala durante algumas das aulas mais tediosas do cursinho do ano anterior. Resolvi tentar a sorte pois, por mais despedaçado que eu estivesse, eu sempre seria um romântico.

Parecia que a sorte se sentava ao meu lado lentamente. Ela aparecia na porta de casa, sorrindo e dizendo que passou no mercado, comprando pipoca e refrigerante. Ela se convidava para assistir um filme que eu havia ouvido falar antes, e tinha um leve interesse em assistir. Corria para abrir a porta, ela entrava, sorria. Aprumava-se antes de passar pela porta. Deixava as coisas na cozinha, me enchia de elogios durante toda a travessia domiciliar, até que chegava o ponto de se sentar ao meu lado. Sentia que as coisas poderiam ser diferentes, meu peito inflamava um pequeno fogo que verdejava, assassino e cheio de vida, por entranhas e caminhos bloqueados. Era a tal da estima, na verdade, percebi, que fazia visita nesses momentos, não a sorte. E sendo assim, em todos os convites, nunca ela ficava para assistir o filme, nunca se sentava por mais de dois minutos antes de inventar alguma desculpa, dizendo voltar depois, e ela sempre voltava, não se engane disso, a cada passada de foto, a cada combinação, match, descaradamento, chame do que quiser, lá estava ela se aprumando me aprumando aprumando minha vida singular triste bloqueada por raízes de plantas que eu mesmo plantei e nunca soube como cuidar aprumando a doçura de meus textos o relato de minhas vicissitudes acalentando auxiliando o batimento de poesia por meu sangue agridoce de espelho quebrado lá estava ela e ela e ela para depois aparecer ela e ela e ela e ela e olha só uma amizade aprumavame textos literarios poeticos teatrais uma vida passava a se orientar novamente de amor e tentativas falhas de paixao e sem mais la estava ela she was there fucking looking at me dizendo je naime pas toi e a vida seguia infrutifera sofrendo vivendo sendo vida afinal que drama era estar no palco tudo parecia otimo demais vamos ser vamos embora vamos ser elsewhere quero ser o que eu posso ser quero ser sozinho quero ser milhoes do meu melhor eu quero meu ego inflado e estourado para saber que eu posso eu eu eu nos noseueunos je me moi meu myself end ai

segui. eis que 2015 parece ser o ano das grandiosidades. mudo-me para uberaba para fazer um curso superior. é o ano da dor de abandonar aqueles que sempre me amaram, de chorar na cozinha um dia antes de partir só de pensar na despedida da partida, notas partidas junto às lágrimas. mantenho a estima estimada. se não sou o meu melhor por fora, é o app tendencioso que me ajuda a ser o meu melhor sem que as pessoas, as ladies, saibam. diversão? coisa séria? sei lá o que faço, só faço, pois é o que me aparenta ser correto.

Até que aparece uma certa garota que não morava em Uberaba e que eu, no meu desejo inflamado pelo aplicativo, combinei. Ela era de Uberlândia. Conversas foram, conversas voltaram. Recados fofos compareceram sem cerimônias. Declarações espontâneas seguiram a mesma trilha. E nada de encontro físico, um acontecimento que nunca viria a existir. Se já leu o meu texto Silêncio, você já sabe a história. A vida segue, o silêncio retalha aos poucos o que parecia ser a solução de muitos problemas (afinal, não é isso o que fazemos? Embutimos uma significação muito superior, quase utópica, de que a vida só é vivida de fato caso encontremos com o amor de nossas vidas, aí seremos felizes para sempre pois alguém nesse mundo nos amará da mesma forma que nós amaremos, todos juntos neste mundo, nós contra eles, para sempre. Uma existência romântica, esperançosa, que, se não considerar a existência de um deus, pelo menos considera a existência de uma rota planejada, um destino único, unindo duas linhas singelas num caminhar contínuo).

Tudo se segue. A queda, a libido, a euforia. Tudo vai embora, nada permanece a mesma, nos mantemos fieis à ideia de luzes ao amanhecer, ondas para surfar, bocas para beijar. Nada disso acontece, a vida se permanece, se ausenta de grandes emoções, vai embora numa piscadela à garota da porta e logo mais chama um Uber para voltar para algum lugar sem nome. 

As pessoas me parecem seguir a mesma ideia, afinal, que panfletei dentro de mim por todos esses anos em relação ao tal do Tinder: quem sabe dá certo. Entretanto ninguém sabe o que quer. Mesmo durante os encontros (existentes mais pela análise calorosa da aparência física dos indivíduos do que por qualquer outro elemento - ninguém se descreve, é muito difícil, quem se descreve se limita, bla bla bla), duas pessoas não concordam, uma quer sexo, uma quer amor, uma acha que quer amor, mas quer sexo, outra quer sexo, mas quer amor, ninguém se entende, todo mundo acaba encontrando todo mundo, vira caçador pokémon, coleciona possíveis peguetes e o Rei Silêncio reina mais uma vez na vasta extensão de seu território. E lógico, há aqueles que querem apenas se divertirem porque colecionar matches é mais legal que Pokémon Go, apesar de ambos gastarem uma bateria...

É isso o que acontece quando unimos nossa futilidade, nosso desejo de nos sentirmos atraentes para estranhos e nossa esperança, quase mórbida, de que um dia seremos felizes: cavamos um buraco ainda mais fundo dentro de nossas míseras existências cheias de ilusões e desejos, às vezes passageiros, às vezes eternos. Amor é a bandeira mais levantada, a mais defendida, e a que menos cobre os leitos na calada da noite. No meio dessa alegoria simbolizada por uma chama (uma insígnia de ginásio? Pegue todxs que puder!), o que sobra é o que sempre chega, mesmo que apenas de repente, num calafrio passageiro: uma leva de amargor que preenche seu coração até transbordar por sua alma. E você nem percebe até que seja tarde demais.

Queremos nos sentir vivos através de nossos amores (sentimentais, sexuais, familiares, de pura amizade), de nossos corpos imperfeitos, tentando ignorar sempre a fragilidade e o absurdo que regem nossas jornadas. Alguns vão em festas para se divertirem e se esquecerem de suas notas, às vezes baixas, recebidas na universidade. Alguns bebem até cair. Alguns fumam, outros injetam. Outros ficam em seus quartos se masturbando com as ideias e imagens de outros. Ficam em seus quartos passando o dedo para a esquerda e para a direita em busca de alguém que também esteja fazendo a mesma coisa. Alguns jogam, outros leem, e alguns escrevem. Passamos nossas vidas em busca de sinais de vida, de pulsos de vida, além daqueles que conseguimos identificar ao colocar um dedo na garganta. Buscamos algo que nos complete, que nos faça felizes, nem que por apenas um segundo. Planejamos nossas vidas pelo andamento lento do calendário, o dia seguinte será melhor, o dia seguinte será pior, prova, trabalho, feriado, festa. Repita a busca por pulso. Agenda, dedo para a esquerda, dedo para a direita, depois eu mando mensagem, coloca os fones de ouvido, pega o ônibus, aquela moça olhou para mim será que me deu mole?, anda, tropeça, ri, a noite chega, dedo para a direita, dedo para a esquerda, quantos amores refletidos na imensa nulidez do teto? Você sentiu algo bater? Calendário, trabalho, aula. Festa, dedo para cima, dedo para baixo, dedo vai e vem, dedos vêm e vão. Mãos quentes, mãos frias. Desejo, cerveja, risadas espontâneas, a crise da Síria, por que todas essas bombas?, Deus é Fiel!, você viu a prisão do Lula? Você sentiu? Dedos, pés, cabeças, seios e ceias. A busca continua, Ulisses ainda não chegou em casa, Winston ainda não se libertou, vai malandra, a fé ruge no meu coração de lata e nós não merecemos amor, dia após dia, amando os Jesus do tabajara. Busca, buscando, buscapé. Aniversário, casamento. Você sente algo batendo? Bata, batata, aquele filho da puta bateu na mulher, bateram o carro, e o coração de lata enferrujado? Bate? Bate? Batman. Batida, suco, vodka. Bate, bate, bate na bala. Balada, baleada. Batem na porta, onde ele está está atrasado estou esperando há duas horas neste restaurante. Bosque, busca. Você sente a batida dos pés?  A bala na boca, a bala no peito. Bate, bate. Tudo bate.

E você consegue sentir o seu pulso?

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