Persona 4 Golden e a pós-verdade em um mundo (quase) cego



Numa aula de apresentação, mencionei que gostava, sim, de videogames para meus alunos. Então um deles me perguntou: qual o seu jogo favorito? Poxa, que pergunta difícil, meu jovem. Na hora, eu experienciei alguns segundos de conflito interno. Olhei para minha tatuagem no pulso direito e refleti. Minha boca já tinha feito a ligação com meu coração antes mesmo de eu chegar a qualquer conclusão. Respondi: Persona 4. A aula acabou e a reflexão permaneceu. Por que eu disse Persona 4 e não Persona 5, o jogo que foi, inclusive, base para meu trabalho de conclusão de curso? A resposta só se tornou clara quando eu finalmente coloquei minhas mãos num PlayStation Vita e joguei Persona 4 Golden, a versão definitiva do Tal-Jogo-Favorito: Persona 4 é o meu jogo favorito porque é a minha força motriz. 

Joguei Shin Megami Tensei: Persona 4, também chamado de Persona 4, Persona 4 Vanilla ou apenas P4, pela primeira vez em 2009, apenas alguns meses depois de seu lançamento no ocidente. A princípio, eu não tinha interesse nele: eu queria Shin Megami Tensei: Persona 3 FES, jogo que havia recebido o título de "RPG hardcore" por uma das revistas especializadas na marca PlayStation que eu lia na época. Eu, como adorador de RPGs desde o momento que descobri Pokémon e Final Fantasy IV, estava fascinado: eu queria jogar aquele título com elementos de simulador de relacionamentos e traços de anime que era chamado de hardcore. Não, eu não queria apenas jogar; eu PRECISAVA jogar. Procurando pelo 3, descobri a existência do 4 e quando finalmente o consegui... não foi amor à primeira vista, para ser honesto.


 Comecei a jogar P4 em fevereiro de 2009 e a abordagem me interessou bastante: o protagonista é um jovem do 2º ano do ensino médio, com nome e sobrenome definidos pelos jogador, que está se mudando para a casa de seu tio materno e de sua priminha de 7 anos porque seus pais terão que ficar um ano fora do país por conta do trabalho. Ao chegar em Inaba, a cidadezinha do interior do Japão em que seu tio mora, uma série de assassinatos bizarros começam a acontecer. É quando o protagonista escuta um rumor bem estranho: observando uma televisão desligada por volta da meia-noite em uma noite chuvosa, você irá ver na tela a sua alma gêmea. 

Não demora muito para o heroi da história (que eu vou chamar de Yu a partir de agora, já que é o nome oficial utilizado pela empresa) descobrir que os rumores eram verdadeiros... bom, pelo menos em parte. Yu vê a tela de sua televisão ligar sozinha e uma silhueta aparecer. Ao ver isso, algo desperta dentro dele e, por instinto, ele tenta tocar a imagem que está sendo reproduzida na televisão. Para sua surpresa, sua mão passa pela tela, como se ela fosse um portal. Não demora muito tempo para descobrir que ele possui o poder de adentrar telas de televisão e se transportar para o TV World, o Mundo da TV, onde criaturas perigosas, chamadas Shadows, habitam. Então, Yu e alguns de seus colegas de sala descobrem que o rumor, chamado de Midnight Channel, o TV World e os assassinatos estão todos ligados: alguém no nosso mundo possui o mesmo poder de Yu, está utilizando o Midnight Channel como "aviso" de quem pretende matar e está jogando as pessoas nesse outro mundo, onde elas são atacadas pelos Shadows e consumidas por... elas mesmas.


É isso mesmo que você leu. As pessoas que são jogadas no TV World criam espaços físicos ao eu redor baseados em seus desejos mais profundos e obscuros, desejos que fazem parte de suas sombras (aquilo que, segundo Jung, seria tudo que, por pressão individual ou social, não aceitamos sobre nós e tentamos enterrar em vez de aceitar). Uma vez lá, essas pessoas são obrigadas a enfrentarem seus sombras, mas não havendo mais ninguém por lá para ajudá-las a se aceitarem, a sombra devora o ser original e ele aparece morto no mundo real, como aconteceu com as vítimas dos assassinatos. Com esse conhecimento em mãos, Yu e seus amigos formam o Investigation Team tendo como intuito descobrir quem está sequestrando pessoas e jogando-as pela televisão para serem mortas.


Apesar da narrativa extremamente interessante e das mecânicas de jogo agradarem bastante (combate por turnos, no melhor estilo JRPG) algo me travou no jogo: o tal do hardcore. Prestes a enfrentar o Shadow Kanji, quarto chefe do jogo, eu simplesmente desisti porque... PORQUE O JOGO ERA DIFÍCIL DEMAIS MESMO COMIGO JOGANDO NO MODO NORMAL. Eu tentei inúmeras vezes enfrentar o mesmo chefe até meados de março, quando eu desisti do jogo sob a desculpa de: se eu estou tendo tanto problema com esse chefe, com meus personagens entre os níveis 20 e 25, imagina os próximos chefes (eu não tinha como saber na época, mas aquele, considerando curvas de aprendizado e de dificuldade do jogo, era realmente o chefe mais difícil do jogo).


Entretanto, o jogo ficava aparecendo na minha cabeça a todo o momento, pedindo para eu dar mais uma chance. Meses se passaram e eu não dei essa segunda chance... até julho de 2009, quando eu me vi determinado a passar por aquele chefe e finalmente terminar o jogo. Nunca uma decisão em meus 14 anos de vida tinha sido mais acertada. 


Aproveitando as férias da escola (que haviam sido prologadas devido ao surto do H1N1), eu passei dias inteiros com meus PlayStation 2 ligado enquanto eu jogava Persona 4. Acordava às 7h, 8h já ligando meu PS2 e só ia dormir às 2h, 3h quando eu via que o controle estava caindo da minha mão e os meus olhos estavam mais fechados do que abertos. Sem a oportunidade de salvar em alguns momentos, eu ia tomar banho ou comer e deixava o jogo lá, ligado, esperando eu cumprir a promessa de que eu voltaria logo. Quando finalmente terminei o jogo e vi os créditos finais, caí num choro silencioso que eu não havia experimentado até então.


Shin Megami Tensei: Persona 4 foi o primeiro jogo que conseguiu pegar meu coração e atravessá-lo completamente, em todos os sentidos. Eu ri, chorei, fui surpreendido e, mais importante do que tudo: eu mudei. Eu não era mais um pré-adolescente procurando por um jogo que pudesse ser jogado por várias horas e que fosse divertido, eu era um adolescente procurando por novas experiências de vida nos vários aspectos artísticos da humanidade. Isso não havia ficado tão claro na época, mas eu amadureci muito entre esses meses que joguei e joguei de novo Persona 4. 


P4 não é um jogo sobre um grupo de adolescentes com poderes que decidem investigar uma série de crimes sobrenaturais; taxar o jogo assim é menosprezar o seu potencial. Persona 4, seja em sua versão original, seja em sua versão melhorada em todos os sentidos, é um jogo sobre como a humanidade se priva da verdade por medo de não conseguir aceitá-la ou por não ser aquilo que queremos, optando, assim, por mentiras convenientes. É um jogo que critica a pós-verdade antes mesmo da expressão ter se tornado famosa devido aos cenários políticos recentes. É um jogo sobre pessoas se descobrindo de inúmeras maneiras, aceitando quem de fato elas são. É um jogo sobre as relações humanas e o que fazemos para aceitá-las, mudá-las ou rejeitá-las. É um jogo sobre como essas relações são necessárias para que essas mudanças ocorram, afinal ninguém é uma ilha. É um jogo sobre amizades e relacionamentos que vão além do encontro físico, das palavras ditas.  É um jogo sobre determinação, coragem, esperança e, acima de tudo, empatia, características necessárias para compreender o mundo ao nosso redor e para nos tornamos capazes de aceitar as duras verdades da vida, principalmente a de tudo está em constante mudança, inclusive nós mesmos, e que aceitar essas mudança em nós e no mundo de cabeça erguida é a melhor coisa que podemos fazer enquanto seres vivos, capazes de pensamentos e de sentimentos.


Persona 4 é a força motriz da minha existência pois me fez ter consciência das batalhas internas que todas as pessoas estão travando. Eu tornei-me mais empático, mais compreensivo quanto àquilo que faz as pessoas sofrerem. Tornei-me uma pessoa mais determinada rumo aos meus objetivos de vida, uma pessoa capaz de aceitar melhor as mudanças que a vida impõe. Tornei-me um melhor falante e conhecedor da língua inglesa devido aos inúmeros diálogos e textos presentes no jogo. Apaixonei-me por psicologia, principalmente pela junguiana, campo em que a série de jogos é baseada. Não é coincidência que eu tenha prestado provas universitárias para me tornar psicólogo. Não é coincidência que meu amor pela língua inglesa, enaltecido pela experiência com o jogo, me tornou o professor de inglês que sou há 5 anos.

Muito desse aprendizado continuou, mesmo que eu tenha esquecido, em muitos momentos, a fonte de onde todo esse movimento de águas em meu interior se originou. Meu amor pela série de jogos permaneceu forte e prometi a mim mesmo que eu iria atrás de cada título, por mais que eu demorasse para atingir meus objetivos. A última vez que joguei Shin Megami Tensei: Persona 4 foi em 2012, meses antes do lançamento da versão definitiva do jogo, Persona 4 Golden, que prometia mais horas de jogatina, novos elementos na jogabilidade, novos personagens, novas músicas... A verdade é que, em todos esses anos, eu me neguei a chegar perto de minha força motriz porque, se fosse para voltar a jogá-la, eu queria experiencia-lá em seu potencial máximo. Acreditei por muitos anos que eu poderia deixar isso de lado, que o próximo Persona iria eliminar esse sentimento que habitava em mim. Porém, isso era uma mentira elaborada que eu continuei dizendo a mim mesmo por anos a fio, até finalmente conseguir comprar um PlayStation Vita e poder jogar meu jogo favorito em todo o seu esplendor. 

Hoje, 22 de fevereiro de 2020, quase 8 anos depois de seu lançamento, eu finalmente consegui terminar Persona 4 Golden e tudo o que eu senti naquela noite de julho de 2009 ao ver os créditos finais voltou a encher meus olhos de lágrimas. A música final, "Never More", possui um toque alegre, mas mesmo assim eu chorava de nostalgia, chorava por lembrar finalmente de quem eu era quando eu a ouvi pela primeira vez em 2009 e ter percebido o quanto eu mudei desde então. 


Mais importante do que a narrativa revisada e expandida que é melhor que do que a original, mais importante do que as músicas acrescentadas que me proibi de escutar por todos esses anos e que tocaram meu coração de maneiras que eu não esperava, mais importante do que todas as mudanças sutis na jogabilidade, Persona 4 Golden fez com que eu percebesse através de seus temas, extremamente relevantes e atuais, como o jogo continuava a me afetar nos mais pequenos detalhes, como em uma canção, ou em um diálogo que ficou gravado em minha mente, ou em novas situações com os personagens que eu aprendi a amar e a chamar de amigos. Jogar essa nova versão depois de tantos anos demonstrou o quanto eu amadureci e o quanto eu ainda posso mudar, o quanto eu posso ajudar as pessoas ao meu redor e o quanto eu posso mudar o mundo ao continuar de pé, com a cabeça erguida, não me entregando ou recuando perante às mentiras e às tentativas de esconder a verdade que vivemos hoje em dia.

Mais do que um jogo de videogame, Persona 4 Golden é um grito político para não abandonarmos a verdade em pró de uma mentira conveniente e um alerta drummondiano para nos unirmos perante à névoa que encobre o mundo: "não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas". Enquanto tivermos empatia, coragem e determinação e estivermos juntos, nada poderá nos deter.

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